29.OUT.2017

Neurologia Vascular

AVC, AVE ou Derrame??? A Torre de Babel Cerebrovascular

Não há dúvidas de que o Acidente Vascular Cerebral (AVC) é uma doença prevalente o suficiente para que seja percebida no dia a dia das pessoas. Exatamente este efeito é que poderíamos esperar da doença que acomete 1 em cada 6 dos habitantes da Terra!!!1 Mas um outro parâmetro muito interessante do impacto do AVC na vida das pessoas é a quantidade de nomes diferentes com os quais é conhecida.

Na língua portuguesa, talvez poucas doenças possuam tantos sinônimos quanto o acidente vascular cerebral. Uma busca rápida no site do DeCS – Descritores em Ciências da Saúde (decs.bvs.br)2, vocabulário oficial utilizado na indexação da produção científica, encontramos no mínimo sete termos (não contabilizando aqui as variações destes mesmos termos) a saber: Acidente Vascular Cerebral, Derrame Cerebral, Apoplexia, Apoplexia Cerebral, Apoplexia Cerebrovascular, Acidente Vascular Encefálico, Acidente Cerebrovascular.

Se a confusão já é grande no meio acadêmico oficial, não é diferente entre a população leiga. Um estudo famoso sobre o assunto (Stroke Awareness in Brazil – Alarming Results in a Community-Based Study)3 entrevistou 814 pessoas em 4 cidades brasileiras e encontrou vinte e oito (!) nomes diferentes para os quais as pessoas se referiam ao AVC. Interessante é que esse e outros estudos semelhantes trazem como principais termos lembrados: derrame, AVC e AVE.

Entres estes, qual seria a melhor denominação?

Derrame, embora popular, é um termo não preciso – sugere derramamento de sangue o que na verdade ocorre apenas na minoria dos casos (20%), os acidentes vasculares hemorrágicos. Assim, para sermos tecnicamente corretos o termo deve ser usado somente para os eventos hemorrágicos, mas é usado indiscriminadamente para todos os subtipos. Até porque é um pouco estranho aos ouvidos falar “derrame isquêmico” ou “derrame hemorrágico”... Um outro ponto negativo é que este termo possui uma conotação fatalista, como em: “o leite está derramado”. Isto poderia ser um potencial problema já que vivemos uma era de tratamento do AVC isquêmico no qual uma postura ativa é fundamental para o sucesso do tratamento – afinal, “tempo é cérebro”!!!.

Acidente Vascular Cerebral (AVC) versus Acidente Vascular Encefálico (AVE)

Entre os profissionais de saúde, estes são os termos de uso mais comum, mas não livres de críticas. Usar o termo acidente colabora com a visão equivocada sobre a doença, de certa forma tirando de cada um de nós (pacientes e profissionais) a responsabilidade pela prevenção, afinal acidentes acontecem...


Figura: A diferença entre o cérebro e encéfalo humano. Além dos hemisférios cerebrais o encéfalo engloba ainda o diencéfalo (estruturas profundas), o tronco cerebral e o cerebelo.

Controvérsias semânticas a parte, acidente vascular cerebral (AVC) é o termo mais aceito no meio médico, com uma sigla bem difundida e que dificilmente pode ser confundida com outras doenças. Já o termo acidente vascular encefálico ou AVE é uma tentativa de deixar o conceito tecnicamente mais correto, uma vez que anatomicamente pode acometer todo o encéfalo e não só o cérebro. Se o (justo) objetivo era esse a pendenga continua. Afinal, como devem ser chamados os eventos que acometem a retina ou a medula? Tecnicamente não fazem parte do encéfalo...

Uma outra consideração importante é que embora os dois termos sejam os mais utilizados nos meios técnicos não são igualmente populares. Uma busca na Scielo – Scientific Electronic Library Online (scielo.br)4, a biblioteca eletrônica de publicações científicas brasileiras traz 59 resultados para o termo exato “acidente vascular encefálico” contra 277 para o termo exato “acidente vascular cerebral”. E a popularidade deste último é confirmada ainda quando buscamos documentos oficiais do Ministério da Saúde. Por exemplo, a Portaria Ministerial 665 de 12 de abril de 2012: “Dispõe sobre os critérios de habilitação dos estabelecimentos hospitalares como Centro de Atendimento de Urgência aos Pacientes com Acidente Vascular Cerebral (AVC), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)5... 

Existe consenso?

Em 1996, durante o Congresso Brasileiro de Neurologia, a Assembléia Geral da Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares (SBDCV) aprovou que o termo que deveria ser empregado para doenças cerebrovasculares agudas seria o de Acidente Vascular Cerebral para o público especializado e derrame para o público leigo. Tal decisão foi ratificada doze anos depois em 2008 durante a reunião extraordinária da SBDCV para elaboração do 2o Consenso de Tratamento de Fase Aguda do AVC6.
Assim, a popularização do conhecimento e desmitificação desse grave problema de saúde começa com a unificação de sua nomenclatura. Nesse sentido a posição oficial é a que o termo Acidente Vascular Cerebral deva ser usado quando o público é especializado e derrame quando o público for leigo. 

Saiba mais:

1.     Seshadri S, Beiser A, Kelly-Hayes M, Kase CS, Au R, Kannel WB, et al. The lifetime risk of stroke: Estimates from the framingham study. Stroke. 2006;37(2):345–50. 
2.     BIREME - Centro Latino Americano e do Caribe em Ciências da Saúde. DeCS - Descritores em Ciências da Saúde [Internet]. 2017 [citado 1 de outubro de 2017]. Recuperado de: www.decs.bvs.br
3.     Pontes-neto OM, Silva GS, Feitosa MR, Figueiredo NL De, Fiorot JA, Rocha TN, et al. Stroke Awareness in Brazil. 2008; 
4.     FAPESP - BIREME. SciELO - Scientific Electronic Library Online [Internet]. 2017 [citado 1 de outubro de 2017]. Recuperado de: www.scielo.br
5.     Brasil. Ministério da Saúde. PORTARIA No 665 , DE 12 DE ABRIL DE 2012. Dispõe sobre os critérios de habilitação dos estabelecimentos hospitalares como Centro de Atendimento de Urgência aos Pacientes com AVC, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), institui o respectivo incentivo f. 2012. 
6.     Gagliardi RJ. Acidente vascular cerebral ou acidente vascular encefálico? Qual a melhor nomenclatura? Rev Neurociencias. 2010;18(2):131–2. 
 

Autor

Dr. Gabriel Pereira Braga

O Dr. Gabriel Pereira Braga é consultor em Neurologia Vascular do Neurodrops. É graduado em Medicina e fez residência médica em Clínica Médica pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Fez residência em Neurologia e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, onde foi Responsável Técnico e Coordenador da Unidade de AVC por 5 anos.
Atualmente, é neurologista assistente e responsável pelo Ambulatório de Neurovascular do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e atende no AVCCENTER Neurologia. É Membro Titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), e vice-coordenador do Departamento Científico de Neurossonologia da ABN.

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