12.NOV.2017

Neurointensivismo

As mudanças no protocolo de morte encefálica com o Decreto 9.175 de 18 de outubro de 2017

Definir vida, definir morte... O que é morte encefálica?
 
    Confirmar o diagnóstico de morte nem sempre é um processo direto. Não apenas por complexidades clínicas mas também porque o tema envolve questões filosóficas, religiosas e principalmente a possibilidade de doação de órgãos. Nessa tarefa, na qual não há espaço para incertezas, os processos precisam ser transparentes e altamente acurados.
 
    Nos idos do século XIX a cessação da vida era diagnosticada fazendo um corte na artéria radial – se não houvesse sangramento a pessoa era considerada morta. Ainda nessa época não era incomum alguns artifícios como colocar um copo com água sobre o peito do paciente ou segurar uma pena diante das narinas dos pacientes na esperança de flagrar algum movimento respiratório. A invenção do estetoscópio introduziu a ausculta do coração como parâmetro adicional. E dessa maneira, o diagnóstico era relativamente simples: sem batimentos cardíacos ou respiração, o paciente estava morto.
 
    Mas a partir da segunda metade do século XX mudou o cenário. Ventilação mecânica, drogas vasoativas e suporte cardiocirculatório avançado, fizeram surgir uma situação até então inédita na Medicina: a perda irreversível das funções do sistema nervoso central, em especial do encéfalo (encéfalo? Confira aqui) porém com preservação, ainda que temporária, da função cardíaca. Assim, estava estabelecido uma nova forma de se estar morto, ou melhor dizendo, a morte pelo critério neurológico.
 

Divergências entre países
 
    Embora ética e legalmente aceito em vários países, e inclusive reconhecido por diversas religiões e líderes religiosos (o papa Pio XII reconheceu a morte por critério neurológico já em 1957 e em 1999 o próprio papa Bento XVI se declarou doador de órgãos), ainda hoje não existe uniformidade universal nos critérios para a constatação de morte por critério neurológico.
 

A situação no mundo: Em verde países com protocolo clínico para avaliação de morte por critério neurológico.  Em vermelhos países sem protocolo definido. Os países não coloridos não participaram da pesquisa.

    Em alguns países como o Inglaterra e o restante do Reino Unido, basta que haja a comprovada perda de função do tronco encefálico para que seja levantado a hipótese de morte por critério neurológico, uma situação conhecida com “brainstem death”. Situação diferente do adotado pela maioria dos países, como aqui no Brasil por exemplo. Por aqui, adota-se o conceito “whole brain death” ou seja, se aventa a possibilidade de morte por critério neurológico quando se constata a perda irreversível das funções não só do tronco encefálico, mas também dos hemisférios cerebrais.
 
    Além disso, uma interessante pesquisa envolvendo 91 países enviou questionários a neurologistas, intensivistas, anestesiologistas e outros médicos com experiência em diagnóstico de morte encefálica. Foi observado que 30% destes países não possuem legislação especifica sobre morte por critério neurológico e, ainda, 22% deles não possuíam qualquer protocolo institucional sobre o diagnóstico de morte encefálica. O mais espantoso, quando questionados especificamente se, na opinião deles, morte por critério neurológico era equivalente a morte por critérios cardíacos, 57% responderam que não.
 

Importância de se determinar a morte encefálica
 
    O diagnóstico de morte por critério neurológico é um direito do paciente. Somente por meio dele se estabelece a real situação clínica, passando informações confiáveis para a família. Portanto, tem valor legal e social.  Evita terapias inúteis, uma vez que o paciente já está morto, e permite aos familiares a opção de autorizar a doação de órgãos, ajudando assim vários outros pacientes que se encontram em filas de transplante. Além disso, é de caráter obrigatório e possui notificação compulsória para a Central Estadual de Transplantes.
 

A Lei dos transplantes
 
    O Decreto Presidencial 9.175 de 18 de outubro de 2017 vem em substituição ao Decreto 2.268 de 30 de junho de 1997 e regulamenta a “Lei dos transplantes”, como ficou conhecida a lei 9.434 de 4 de fevereiro de 1997. Em sua maior parte, o documento oficializa e traz segurança jurídica a procedimentos já rotineiros no diagnóstico de morte encefálica e retirada de órgãos e tecidos para transplantes.
 
    Os critérios clínicos e protocolo de avaliação foram regulamentados ainda em 1997 por resolução do Conselho Federal de Medicina e permanecem inalterados. Entre outros itens são necessárias para o diagnóstico duas avaliações clínicas, por médicos diferentes, e ainda um exame complementar seja ele baseado no registro da atividade elétrica cerebral, do metabolismo ou ainda da ausência de circulação sanguínea encefálica.
 

 

Principais mudanças
 
    São vários os pontos de mudança em relação a regulamentação anterior. Algumas delas são inovações como a adequação aos novos modelos familiares ao permitir que além do cônjuge, também o(a) companheiro(a) possa autorizar a doação de órgãos. Outras vêm no sentido de agilizar o transporte dos órgãos doados como por exemplo dispor do apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) para tal se necessário. E ainda outras esclarecem pontos deixados em aberto na lei de 1997, como por exemplo, qual o procedimento se for necessário uma necropsia para informações médicas adicionais sobre a causa da morte no possível doador de órgãos.
 

Pontos de incerteza – quem tem treinamento para realizar a avaliação?
 
    Porém o ponto mais polêmico encontra-se no processo de determinação do diagnóstico de morte encefálica. A nova regulamentação extingue a obrigatoriedade de que um dos médicos envolvidos no processo seja um neurologista. Agora, qualquer médico “... especificamente capacitado...”, conforme o parágrafo 3o do Artigo 17 do referido decreto, pode dar o diagnóstico de morte encefálica.
 
    Embora especialistas da área de transplantes argumentem que a retirada da exigência de neurologistas no processo diagnóstico aumente o número de doadores, na prática aparentemente os maiores entraves a doação estão relacionados às recusas familiares e não ao processo diagnóstico. Um estudo no Estado do Paraná evidenciou uma taxa de recusa de doação de 46% enquanto apenas 4% dos potenciais doadores tiveram parada cardiorrespiratória (morreram por parada cardíaca) durante o protocolo de avaliação de morte encefálica. O resultado foi uma perda de 73% de potenciais doadores de órgãos.
 
    Entre as principais barreiras para a doação encontram-se fatores culturais, religiosos e principalmente o baixo conhecimento sobre o morrer por critério neurológico. Este último fator aparentemente não depende de escolaridade, sendo documentado também entre universitários, inclusive estudantes da área de saúde. Em um estudo com 310 alunos de medicina, apenas 33% referiram ter participado de alguma aula sobre morte encefálica e apenas 9,7% se sentiam aptos a participar de um protocolo de determinação de morte encefálica. Resultados que torna mais difícil cumprir a exigência presidencial do médico “... especificamente capacitado...”.
 
    Deve ser ressaltado que o diagnóstico de morte encefálica não necessita de tecnologia avançada e falhas de conscientização e educação profissional podem e devem ser contornados. Os neurologistas/neurocirurgiões e neuropediatras são os profissionais médicos com grande treinamento específico sobre o assunto, o que pode ser útil principalmente na presença de possíveis confundidores durante processo. Divulgação, educação, falar sobre o morrer e, principalmente, explicitar as escolhas sobre doação quando em ainda gozando de boa saúde provavelmente sejam respostas mais apropriadas para o problema da falta de doadores.
 

Saiba mais:
 
Subchefia para Assuntos Jurídicos, Casa Civil, Presidência da República. Decreto No 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei No 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposiçãoo de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamento.
 
Wahlster S, Wijdicks EF, Patel PV, Greer DM, Hemphill JC 3rd, Carone M, Mateen FJ. Brain death declaration: Practices and perceptions worldwide. Neurology. 2015;84(18):1870-9.
 
dos Reis FP, Gomes BH, Pimenta LL, Etzel A. Brain death and tissue and organ transplantation: the understanding of medical students. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(4):279-83
 
de Freitas RA, Dell'Agnolo CM, Alves EF, Benguella EA, Pelloso SM, Carvalho MD. Organ and tissue donation for transplantation from fatal trauma victims. Transplant Proc. 2015;47(4):874-8.
 
Da Silva IR, Frontera JA. Worldwide barriers to organ donation. JAMA Neurol. 2015;72(1):112-8.
 
Hocker S, Wijdicks EFM. Simulation training in brain death determination. Semin Neurol 2015;35:180-188.

Autor

Dr. Gabriel Pereira Braga

O Dr. Gabriel Pereira Braga é consultor em Neurologia Vascular do Neurodrops. É graduado em Medicina e fez residência médica em Clínica Médica pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Fez residência em Neurologia e Doutorado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, onde foi Responsável Técnico e Coordenador da Unidade de AVC por 5 anos. Atualmente, é neurologista assistente e responsável pelo Ambulatório de Neurovascular do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e atende no AVCCENTER Neurologia. É Membro Titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), e vice-coordenador do Departamento Científico de Neurossonologia da ABN.

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