29.OUT.2017

Epilepsia

Derivados da maconha no tratamento da epilepsia

Nos últimos anos, muito tem sido falado sobre os potenciais efeitos terapêuticos dos derivados da maconha para várias condições clínicas, de câncer a Doença de Parkinson. Entre estas condições, a epilepsia é uma doença que provoca crises epilépticas que podem se manifestar como convulsões (movimentos involuntários, caracterizados pela rápida contração e relaxamento dos músculos, por vezes violentos, e eventualmente acompanhados de alteração da consciência) que podem ser de difícil controle com as medicações tradicionais. Muitos pacientes e especialmente pais de crianças com epilepsia de difícil controle tem requerido seu direito ao uso dessas substancias em seu tratamento. Como a procura foi grande, no final de 2016, a Anvisa definiu regras para a venda de medicamentos a base de canabidiol e tetraidrocanabinol, dois dos derivados mais abundantes da planta Cannabis sativa.

Mas o que realmente se sabe sobre seus efeitos na epilepsia?

Estudos pré-clínicos, ou seja, realizados em laboratório, mostraram evidências da existência de efeitos anticonvulsivantes tanto do canabidiol quanto do tetraidrocanabinol nos animais avaliados. Porém, para confirmação da eficácia como medicações, e de que os malefícios que podem advir do seu uso não são maiores que seus benefícios, são necessárias pesquisas clínicas confiáveis com um número relativamente grande de pacientes para que só assim haja a liberação da sua produção para fins terapêuticos. Este é um processo comum a todas as novas medicações candidatas a serem comercializadas.
 

Mas... funciona???

Há muitas décadas existe a hipótese de que estas substâncias podem ser uteis para o tratamento de pacientes com epilepsia refratária (de difícil controle). Um dos primeiros estudos foi feito em 1949 e mostrou melhora em duas de cinco crianças que usaram um composto isolado de tetraidrocanabinol. Resultados mais recentes apontam para a eficácia destes compostos no tratamento da epilepsia de difícil controle, mas o assunto ainda divide opiniões.

Em 2001, uma entrevista aplicada a 215 pacientes com epilepsia que faziam uso de maconha para fins recreacionais mostrou que 90% não percebeu alterações na frequência das crises. Em contrapartida, uma pesquisa canadense realizada em 2004, com um grupo de 165 pacientes adultos com epilepsia, verificou que 28 deles usavam maconha. Neste subgrupo observou-se melhora em 68% dos casos após inicio do uso da maconha.

Mais recentemente, em 2014, Harmele e outros pesquisadores fizeram uma avaliação em relação ao uso de maconha e outras drogas ilícitas por pacientes com epilepsia. Verificaram que entre 310 pacientes, 63 deles usaram maconha e a maior parte deles não viu diferença no controle dos sintomas. Já entre os que usaram outros tipos de drogas ilícitas, observou-se piora.

Em 2015 um estudo no estado do Colorado, Estados Unidos, levantou um ponto interessante. Neste estado, a venda de maconha para fins recreativos e medicinais é legalizada e, dessa forma, existem famílias que se mudam para lá a fim de conseguir oferecer o tratamento para filhos com epilepsia de difícil controle. São pacientes que já utilizaram diversos tipos de medicamentos em doses altas para tentar o controle dos sintomas e não atingiram melhora significativa. No referido estudo, constatou-se que a percepção de resposta positiva dos pais em relação à redução das crises epilépticas dos filhos foi duas vezes maior em famílias que se mudaram para o estado para poder receber a terapia do que nas famílias que já moravam no estado. Esse estudo nos faz supor que quanto maior a crença de que a droga é benéfica e maior o sacrifício para obtê-la, maior a resposta percebida. E fica a dúvida: até que ponto essas medicações foram realmente eficazes no controle das crises epilépticas? Houve uma percepção inadequada dos pais relacionada a forte crença de que a medicação melhoraria a qualidade de vida de seus filhos?

Uma pesquisa com 19 crianças indicou que 10 delas tiveram uma redução substancial de crises após inicio do uso do extrato enriquecido com canabidiol segundo o relato dos pais. Nesta pesquisa, porém, foi feito exame de eletroencefalograma (utilizado para o diagnóstico e acompanhamento das epilepsias) antes e depois do tratamento, sem se constatar melhora no padrão do eletroencefalograma. Novamente, nos deparamos com a dúvida... Efeito real ou percepção distorcida?

Examinaremos agora resultados de alguns estudos clínicos que servem para verificar a eficácia das medicações e seus efeitos colaterais em humanos. Este tipo de estudo permite uma análise um pouco mais objetiva em relação aos anteriormente citados.

Na Alemanha, em 1986 e 1990, dois estudos com adultos não mostrou efeitos no controle das crises. Alguns relatos de casos mostraram piora. Porém, em 2013, foi iniciado um trabalho envolvendo 10 centros especializados em epilepsia sobre o tratamento de crianças e adultos jovens com um extrato purificado contendo 99% de canabidiol e 0,1 % de tetraidrocanabidiol, chamado Epidiolex. Entre 137 pacientes que receberam o tratamento por pelo menos três meses, a redução de crises foi de 54%.

Nesta mesma direção, em março de 2016, um estudo clínico norte-americano que incluiu 214 pacientes com epilepsia refratária foi publicado na prestigiada revista Lancet Neurology. Neste estudo, foi administrado aos pacientes de 25 a 50 mg/kg de canabidiol e a redução média das crises motoras foi maior que 30%, demonstrando uma melhora no controle das crises. Neste mesmo ano, autores israelenses publicaram um estudo com um grupo de 74 pacientes mostrando resultados positivos em eficácia.


E em relação aos efeitos colaterais? Faz mal?

Muitos dos dados disponíveis sobre segurança e perfil de efeitos colaterais especialmente em relação ao uso prolongado vem de estudos sobre uso recreacional. Mas vale ressaltar que o canabidiol (a substância obtida do extrato principalmente das flores da planta) não tem propriedades psicoativas e possui baixa taxa de desenvolvimento de tolerância, características envolvidas com o desenvolvimento da dependência.

Porém são descritos efeitos adversos de curto prazo como prejuízo da memória, julgamento, e performance motora. Ale'm disso, altos níveis de tetraidrocanabinol foram associados com psicose e aumento do risco de acidentes automobilísticos. Com o uso prolongado, há risco aumentado de vício, que ocorre em 9% (tetraidrocanabinol), além de declínio cognitivo, motivação reduzida, e aumento de transtornos psicóticos. Pode levar a alterações do desenvolvimento cerebral além de QI menor que o esperado. Por este motivo, a indicação do uso, especialmente em crianças, deve ser criteriosa.

No estudo de 2016 citado acima, a maioria dos pacientes apresentou efeitos colaterais, porém em sua maioria de leve intensidade. Eles foram principalmente: sonolência, diarreia, fadiga e redução do apetite. Aqui, o acompanhamento dos efeitos colaterais foi curto, de apenas alguns meses. Seria interessante que se desenvolvessem mais estudos acompanhando tais pacientes a longo prazo já que os candidatos ao uso dessas drogas terão um longo tempo de uso se constatada a melhora do controle das crises, sendo importante saber exatamente quais os prejuízos do uso prolongado nessa população.

O assunto é polêmico e respostas mais definitivas são necessárias. Não apenas para melhorar o tratamento dos pacientes quando indicado, mas também para redução de problemas sociais associados ao tema. No Colorado, é comum a manipulação caseira da medicação e são documentadas a ocorrência de explosões em casas pelo uso de butano na tentativa de extração dos derivados da maconha.


Para quem estaria indicado???

É importante frisar que a indicação do canabidiol em epilepsia hoje se restringe a grupos específicos de pacientes. Em sua maioria, esta medicação é indicada para pessoas que já usaram mais de 5 tipos de anticonvulsivantes diferentes e até mesmo outros tipos de terapias não medicamentosas, como dieta cetogênica e implantação de estimulador do nervo vago. Tudo isso, sem melhora signiticativa.

Como pudemos perceber, a maioria dos estudos que mostraram eficácia foi feita com pacientes na faixa etária entre 2-18 anos, com doenças que além de produzir as convulsões afetam de maneira grave a cognição dos pacientes. Então, muitos deles já apresentam alterações graves de desenvolvimento do sistema nervoso pela própria doença, fazendo com que os efeitos deletérios sobre os aspectos cognitivos dos derivados da maconha não sejam tão perceptíveis. Isto é muito diferente de indicar esses compostos para crianças ou adultos com a cognição normal, pois estes podem sofrer mais com os efeitos deletérios a longo prazo neste sentido.


E no Brasil? 

No Brasil, a Academia Brasileira de Neurologia ressalta que o uso recreativo da planta não é aconselhável mas o uso de canabidiol para o tratamento da epilepsia é reconhecido em casos selecionados. O Conselho Federal de Medina  em resolução (Resolução CFM nr 2.113/14) autoriza a prescrição para crianças e adolescentes portadores de epilepsia refratária a tratamentos convencionais. Como a substância não é comercializada no país, quando prescrita por um médico especialista na área de epilepsia, deve-se proceder a importação mediante aprovação da Anvisa. A autorização excepcional para importação concedida pela Anvisa possui validade de um ano e para obtê-la, os pacientes ou responsáveis legais devem apresentar a prescrição médica com o quantitativo previsto para o tratamento, justificativa para o uso, termo de responsabilidade, entre outros documentos.
 

Saiba mais:
  • O'Connell BK, Gloss D,  Devinsk O. Cannabinoids in treatment-resistant epilepsy: A review. Epilepsy & Behavior, 2017.
  • Devinsky O, et al. Cannabidiol in patients with treatment-resistant epilepsy: an open-label interventional trial. Lancet Neurology, 2016.
  • Press AC et al. Parental reporting of response to oral cannabis extracts for treatment of refractory epilepsy. Epilepsy & Behavior, 2015.
  • Reddy DS. The Utility of Cannabidiol in the Treatment of Refractory Epilepsy. Clinical Pharmacology and therapeutics. 2016.
  • Szaflarski JP, Bebin EM. Cannabis, cannabidiol, and epilepsy — From receptors to clinical response. Epilepsy & Behavior, 2014.
  • Tzadok M et al. CBD-enriched medical cannabis for intractable pediatric epilepsy The current Israeli experience. Seizure (35) 2016.
  • http://portal.anvisa.gov.br/importacao-de-canabidiol

Autor

Dra. Aline Marques da Silva Braga

Dra. Aline Marques da Silva Braga é consultora sobre Epilepsia para o Neurodrops. Ela é formada pela Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT, possui residência médica em Neurologia e Doutorado em Fisiopatologia em Clínica Médica (área de concentração Epilepsia) pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP. É professora de Medicina na Universidade Anhanguera UNIDERP e titulada como especialista em Neurologia pela Academia Brasileira de Neurologia e especialista em Neurofisiologia Clínica pela Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clinica e atende na AVCCENTER Neurologia.

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