12.NOV.2017

Cefaléia

COMO NA MODA, NA CEFALÉIA “MENOS É MAIS” – EVITE O ABUSO DE ANALGÉSICOS

   Entra Maria no consultório. Uma jovem e simpática senhora com seus não aparentados 42 anos. Motivo da consulta: tirar dúvidas sobre uma medicação. 

   Antes sair perguntando como um fofoqueiro (acredito que seja assim que os pacientes enxergam nós médicos nos primeiros minutos da consulta), mantivemos uma conversa leve e agradável sobre propagandas de TV. Ela é publicitária. Odeio propagandas, mas sigo o conselho de um professor da faculdade: “não fale de doença enquanto o paciente estiver em postura de defesa! Converse amenidades até que ela tire a bolsa do colo, descruze os braços ou esboce um sorriso. Aí o terreno será seu para explorar”. Os publicitários têm riso fácil.

    Pergunto a Maria se tem alguma outra queixa neurológica. Ela nega. 

    - Nem uma dor de cabeça? -  pergunto.

    - Tenho, mas é só aquela dor de cabeça normal - responde com certo desdém. 

    - Normal como? -  insisto expressando espanto. 

    - Normal, normal... – em um tom como se falasse do óbvio - aquela dor de todo dia de tarde.

    - Mas dor de cabeça não é normal!

    - Todo mundo tem, doutor! Por isso já ando com meus comprimidos na bolsa. – e puxa da bolsa uma linda nécessaire dourada – Este branquinho é a base de dipirona e cafeína (pra dorzinha do final da tarde), este em gotas eu tomo na dor da TPM (evito o que tem cafeína, porque já fico agitada demais nesse período). Esse azul é grande e ruim de engolir, mas é uma maravilha praquelas dores que latejam. Sabe aquelas que dão enjoos? Tá vendo o vermelhinho? É para quando fico nervosa. Não posso ficar nervosa que a dor me ataca.

    Impressionava-me a naturalidade de andar com tantos medicamentos na bolsa. Lembrei do chaveiro que mamãe levava na bolsa; eram mais de 20 chaves, de todos os cômodos, carros e gavetas da casa. E ela sabia de cada chave, colocando-as inclusive em uma ordem funcional para uso. E como o chaveiro de mamãe, cada remédio da nécessaire dourada tinha sua fechadura (tipo de dor) específica. Reconhecer cada tipo de dor e analisar a resposta de cada medicamento certamente requer mais tempo e atenção que procurar um neurologista...

    O Brasil é um dos maiores consumidores de analgésicos do mundo! Gastamos quase um bilhão de dólares (dólares, não falei “reais”) com analgésicos anualmente. Uma cartela de analgésico simples não chega a custar 3 reais (que não alcança o valor de 1 dólar).  Façamos uma conta rápida: digamos que uma cartela custe 3 reais e contenha 4 comprimidos, quantos comprimidos consumimos por ano? Pois é, o valor assusta! Porém, mais assustador é saber que o uso abusivo desses analgésicos pode levar a problemas hepáticos, renais, úlceras gástricas e, o pior, PODEM ATÉ PIORAR AS DORES DE CABEÇA!!! SIM, O USO ABUSIVO DE ANALGÉSICOS PODE PIORAR OU ATÉ MESMO GERAR UMA DOR DE CABEÇA CRÔNICA



    Tento explicar a Maria que o uso diário e abusivo de analgésicos não é a melhor forma de tratar sua enxaqueca. Maria desenvolvera um quadro de enxaqueca crônica e diária por causa do uso abusivo de analgésicos (mesmo tomando o branquinho de tarde, as gotas na TPM, o azul nas dores que latejavam e o vermelhinho nos momentos de angústia, de forma metódica e rigorosa).

    - Ah, doutor, mas como o senhor quer me convencer que meus remédios para dor de cabeça estão dando dor de cabeça? Como é que meu tratamento para enxaqueca é retirar os remédios para dor? Eu até aceito usar o meu “branquinho” que tem cafeína durante a TPM, se o senhor me passar um “tarja preta” pros nervos... mas tirar todos eles é pedir demais!

    - Maria, mas a causa de sua dor ser diária é esse uso absurdo de medicações. Vamos fazer um tratamento correto!

    - Vamos sim! Inclusive, minha vizinha me indicou esse remédio aqui, mas só vende com receita médica – falava com uma caixa de tramadol, um derivado do ópio, na mão. Esse é tiro e queda pra dor! Ela me indicou e já indiquei para uma colega de trabalho que também tem enxaqueca!

    As estatísticas mostram que cerca de 76% das mulheres e 57% dos homens têm pelo menos um episódio de dor de cabeça por mês. Mais de 80% das pessoas com dor de cabeça tomam remédios sem orientação médica, metade aceitam indicação de tratamento de amigos/familiares e 58% indicam algum tratamento.

    - Mas, Maria, esse medicamento é um derivado do ópio, tipo a morfina. Deve-se usar com cautela e em casos selecionados. Esse medicamento pode causar dependência, por isso tem a venda controlada!

    Os usuários de opioides (tramadol, morfina, codeína e similares) são 7 vezes mais susceptíveis a depressão e visitam 9 vezes mais o pronto-socorro com dor de cabeça.

    - Mas eu não sou viciada, não, doutor. Eu só tomo quando tenho dor! Às vezes eu até tomo uns diferentes desses que lhe trouxe. Meu marido tem hérnia de disco, então às vezes eu tomo dos remédios dele também, para não ficar tomando só dos meus e não me viciar.

    É provável que alguns leitores tenham se identificado com Maria. Aliás, “Maria” é uma paciente frequente nos consultórios dos neurologistas.

    Depois de muita conversa, os publicitários conversam muito, consegui convencer Maria a fazer um tratamento correto e eficaz para sua cefaléia (esse é o nome chique e rebuscado que nós neurologistas damos à dor de cabeça). Aceitou suspender todos os remédios (brancos, azuis, em gotas, derivados do ópio, indicados pela vizinha... todos! Jurou até retirar a nécessaire dourada da bolsa) e tomar apenas o que iria na sua receita.

    - Vou preencher aqui sua receita. Maria... Maria de que?

    - Dos Remédios, doutor. 

Autor

Dr. Raimundo Feitosa Neto

O Dr. Raimundo Feitosa Neto é consultor em Cefaléias do Neurodrops. É graduado em Medicina pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Fez residência médica em Neurologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Dr. Raimundo é neurologista da Oncoclínica - em Teresina e um grande admirador das artes literárias! Instagram: @minha_enxaqueca 

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